KI
Wagner Siqueira
21 de julho de 2012, Niterói, RJ
Desde o inicio dos meus treinamentos em outubro de 2006, ouço meus Senseis diariamente repetirem algumas expressões: “base baixa”, “coluna ereta”, “o hara deve estar alinhado à sua intenção”, “mantenha o zanshin”, “procure relaxar” etc..
Essas expressões, (ainda que técnicas, mecânicas) são de fácil explicação/compreensão, porém, complicadas de serem incorporadas ao nosso dia a dia, quer seja pelos vícios posturais adquiridos ao longo do tempo, pelos vícios de conduta, pelas facilidades que a vida moderna nos proporciona, onde são criadas comodidades artificiais advindas na maioria das vezes da prosperidade econômica, pela burocratização maciça de nossas vidas, e por tantos outros motivos. É por isso que eles também sempre repetem “o cérebro já entendeu, o corpo é que ainda não está obedecendo”.
Em todos os treinos, porém, uma pequena palavra, de imenso significado, extrema complexidade e fundamental importância, para os praticantes de qualquer Budô, sendo a essência do AIKIDO, sempre que é mencionada, me causa fascinação e desperta em mim imensa curiosidade: “KI”.
Mestre Ueshiba, quer seja através de sua espiritualidade, de sua disciplina, de seus treinamentos exaustivos, de sua capacidade de observação etc., certamente compreendeu o KI como poucos, o que o transformou numa pessoa tão especial. Fez nascer sua visão de KI através de sua percepção do funcionamento do universo. Alguns trechos de suas afirmações extraídas do livro O Espírito do AIKIDO, destacadas por seu filho, o segundo Doshu, Sensei Kisshômaru, nos ajudam a entender como ele concebia o KI:
“Através do Budô treinei meu corpo totalmente e dominei todos os seus segredos, mas também percebi uma verdade ainda maior. Isto é, quando aprendi a verdadeira natureza do universo através do Budô, compreendi perfeitamente que os seres humanos devem unir a mente e o corpo, e o KI que liga ambos, e então alcançar a harmonia com a atividade de todas as coisas do universo”.
“A atividade sutil do KI é a fonte maternal que provoca mudanças delicadas na pulsação. É também a fonte da arte marcial como amor. Quando alguém unifica a mente e o corpo em virtude do KI e manifesta ai-ki, mudanças delicadas no ritmo da pulsação ocorrem espontaneamente e waza flui livremente.”
“As mudanças delicadas na pulsação causam movimentos sutis do KI no vazio. Às vezes os movimentos são impetuosos e potentes, outras vezes são lentos e impassíveis. Por essas mudanças pode-se avaliar o grau de concentração ou unificação da mente e do corpo”.
Ao aplicarmos esses conceitos nos treinos diários, fica claro que o entendimento do Ki é extremamente importante para o nosso desenvolvimento não só como artistas marciais mas também como seres humanos, ainda que ele se manifeste de forma diferente em cada um.
Mas o que é o KI?
Partindo da teoria de que o Universo está em constante expansão, ao retroagirmos nossos pensamentos imaginando sua criação, teremos o nada, o vazio, o zero como ponto de partida. Porém, neste nada, tudo estava contido. Em dado momento, do zero surgiu o um, que em seguida se multiplicou para formar dois e assim sucessivamente. Essas multiplicações geram energia que podem ser identificadas como duas forças opostas interagindo entre si. Essas forças opostas são conhecidas no oriente por Yin e Yang e no ocidente como Positivo e Negativo.
Conhecido e estudado desde tempos imemoriais por povos de grande cultura e espiritualidade, recebeu de cada um deles, um nome diferente (QI na China; PRANA na Índia; MANÁ nos países da Oceania; PNEUMA na Grécia; SPIRITUS na antiga Roma; KI no Japão).
Como vimos então, por definição, KI é a unidade básica do universo, uma força criadora, fluida, onipresente, invisível que está presente em toda a natureza, que ultrapassa os limites do tempo e do espaço. É a energia básica que media o físico e o espiritual. É em última análise, a força que anima os seres vivos. Esta energia vital é que nos dá vida e está presa ao Ki Universal através de um fluxo recíproco de ida e volta (Kokyu).
Por ser fluida e onipresente, desde a antiguidade, estes povos consideravam-na o próprio ar e como tem a ver com o estado de espírito, associavam-na também ao humor. Enquanto um ser está vivo, possui esta energia ao seu redor, animando-o. Devemos, pois deixar o seu fluxo desimpedido para que este ir e vir de energia sejam fortes o suficiente para nos tornarmos saudáveis, pois quando este fluxo por algum motivo é interrompido, ficamos doentes e quando ele cessa completamente, morremos.
Recebemos Ki pelo ar que respiramos, pela comida, pela luz solar, pelo sono etc. Também é possível aumentar nosso Ki usando exercícios de respiração e meditação. Ki tem um papel fundamental em tudo o que fazemos. Para favorecer o equilíbrio orgânico e espiritual, pode ser acumulada e guiada pela mente. Por isso Ki é usado pelos artistas marciais no seu treinamento físico e desenvolvimento marcial.
E como traduzir KI para o nosso idioma?
Como praticante de AIKIDO, vou me ater ao idioma japonês. Encontrei na Internet um estudo bastante interessante sobre o KI em que o autor embora afirme não ser linguista, fez, na minha modesta opinião, um excelente trabalho sobre a etimologia da palavra que resumi da seguinte forma: “Traduzir exatamente o sentido da palavra KI do idioma japonês para o português é muito complicado tendo em vista alguns aspectos, como por exemplo:
a) tratar-se de uma palavra que não tem uma correspondente ocidental, embora alguns dicionários possam defini-la como “espírito”, “mente”, “humor” etc.;
b) a língua japonesa possui diversos níveis de significado, do mundano ao místico, fazendo-se necessário por isso que a palavra a ser traduzida esteja inserida em um contexto para que possamos entender sua essência. Neste sentido, as melhores traduções seriam “AURA”, “AR” e “PNEUMA”. AR quando se refere à energia fluida; AURA quando se refere a uma situação de que uma sensação forte está “NO AR”; PNEUMA, por sua vez representa o espírito aéreo responsável pela saúde.
c) outra forte candidata a tradução de KI é a palavra “ESPÍRITO” que no sentido original da palavra latina significa “sopro”, e acabou representando o “SOPRO DA VIDA”, igualando seu sentido à concepção original de KI”.
Aliás, esta seria para mim, a melhor tradução para KI.
Ki. Como explicar? Como entender?
Segundo palavras do Sensei Kisshômaru, “diferente das demais artes marciais que ensinam a unicidade mente-técnica-corpo, o AIKIDO sublinha o KI mais do que a técnica e treina a união ki-mente-corpo, sem é claro, desprezar os waza, sendo estes praticados à exaustão”.
Nos últimos seminários que participei, percebi que o KI tem sido motivo de muitas dúvidas entre os praticantes e de especial preocupação por parte do Sensei Wagner em explica-la. Mas, como entender o KI? Ou ainda, como por em prática essas explicações? Como entender o que não tem cheiro, paladar, o que não pode ser captado pelos nossos ouvidos, o que não pode ser tocado e não pode ser visto?
Apesar de cristão - e não quero aqui fazer nenhum tratado sobre religião - penso que explicar o KI é tão difícil quanto traduzir em palavras para uma pessoa à existência divina. Por exemplo, com quem Deus parece? De que tamanho ele é? Seria ele baixo ou alto, gordo ou magro? Qual seria a cor de sua pele ou de seus olhos?
Assim como explicar, entender o KI acaba sendo igualmente difícil através de palavras e aí eu acho que a resposta para esta questão pode estar alinhada a um aspecto fundamental presente em toda religião: A FÉ, e explico: segundo o Novo Testamento, encontramos em Hebreus 11.1 a seguinte definição para Fé: “Que é Fé? A Fé é a certeza de que o que esperamos está nos aguardando e a prova de que existem coisas que não podemos ver adiante de nós.”. Em outras palavras, ter Fé é, em última análise, acreditar naquilo que não pode ser visto, ouvido ou tocado. Simplesmente acreditamos. Penso que, assim como Deus, o KI não deve ser explicado com palavras e sim com sentimentos e, se para tanto, não podemos fazer uso de nossos cinco sentidos (visão, olfato, tato, audição e paladar), devemos então trabalhar aquilo que aceitamos como sendo nosso sexto-sentido, a INTUIÇÃO.
No estágio em que me encontro creio sinceramente que, o uso de nossa INTUIÇÃO, juntamente com a prática reiterada e o treinamento exaustivo é quem nos farão ter FÉ suficiente para compreender melhor o KI.
Agradecimentos
Obrigado ao Shihan Wagner Bull que dedicou a maior parte de sua vida ao estudo do AIKIDO e que não poupa esforços para transmitir todo o seu conhecimento aos seus alunos. Tenho grande orgulho em fazer parte do Instituto Takemussu e tê-lo como Shihan.
Meus agradecimentos estendem-se aos seus filhos Alexandre e Edgar. Ambos carregam consigo a responsabilidade de levar adiante a dinastia Bull, tão importante para o Aikido brasileiro.
Muito obrigado aos meus Senseis Carlos e Paulo que sempre me incentivaram e nunca mediram esforços para me mostrar e conduzir no caminho; que sempre estiveram comprometidos e dedicados ao Dojo e ao ensino das técnicas do AIKIDO; que sempre se colocaram à disposição de todos nós, alunos do Seigan Dojo; que com o tempo acabaram por tornarem-se grandes amigos. Sensei Carlos "acima de tudo detalhista", Sensei Paulo "acima de tudo marcial". É assim que os vejo. Para nós alunos é um privilégio poder contar com o melhor dos dois mundos em um só Dojo. Vocês são, acreditem, pessoas muito especiais.
Ao professor Geraldo, meu muito obrigado por ter me ajudado muito no início dos meus treinamentos. Suas palavras de incentivo me ajudaram a perseverar no caminho.
Meus agradecimentos também vão para os professores Rafael Silva, Eduardo de Paula, Matsuda, Tamotsu e Constantino Delis, que, participando das bancas de avaliação as quais fui submetido ao longo desses anos, sempre demonstraram sinceridade nas observações ao final dos exames, o que me ajudou muito a crescer tecnicamente.
Obrigado também aos professores Mauro Salgueiro (Yamato Dojo), Marcos (Kitoji Dojo) e Sergio (Hikari Dojo) que sempre me receberam de braços abertos.
Muitíssimo obrigado ao Juliano, que sempre, de forma voluntária, colocou seu pouco tempo livre à nossa disposição, para através do seu caráter e de sua dedicação extremada, nos mostrar como é ser o melhor aluno.
Obrigado ao Pedrinho, que começou a treinar junto comigo e sempre esteve ao meu lado em todos os momentos do AIKIDO, inclusive nos exames. Tenho muito orgulho de você. Excelente amigo, responsável, dedicado, um exemplo para a juventude.
Obrigado também a todos os meus amigos de treino do Seigan Dojo, especialmente ao Washington, Seu João, Rodrigo, Vinícius, Palmieri, Julio, Renato, Murta, à Márcia e as suas filhas Jéssica e Vanessa, Sobrinho, ao Abuhnaman e seu filho Samir, Adelmo, Clarice, Hugo, Cesar, Rayanne, Igor, Sandrão, Lucas, Allan, Luis Carlos e todos aqueles que estão sempre prontos a me ajudar quer seja como uke ou como nage.
Obrigado a todos os alunos do Instituto Takemussu em São Paulo que sempre nos receberam muito bem durante as nossas estadias no Dojo Central para a participação nos Seminários.
A minha esposa Márcia que sempre me apoiou, permitindo que eu dedicasse boa parte de meu tempo livre ao estudo da arte. Muito obrigado, de coração. Tenha certeza que esta atitude faz de mim a cada dia uma pessoa melhor.
Aos meus filhos Allan, Giselle e Raphaela e minhas netas Letícia, Maria Eduarda, Manuela, Julia e Laura, obrigado por existirem e me apoiarem.
Ao Instituto Takemussu e a Confederação Brasileira de Aikido - Brazil Aikikai.
Por fim, agradeço a Deus por permitir a minha existência e colocar em minha vida pessoas tão especiais e esta maravilhosa arte marcial chamada AIKIDO. De coração muito obrigado.
Glossário
Aiki – Harmonização do Ki
Bioki – Doença, Ki fraco
Genki – Vigor
Heiki – Equanimidade
Hinoki – Ki do sol, do fogo, calor
Iki – Força de vontade
Kaiki – Recuperação da vida
Kiai – Exteriorização da energia corporal através do grito
Kime – Força, explosão muscular
Ki no nagare – Ki em movimento, é a evolução do Kihon
Kishi – Morte por falta de ki
Ki Shigai – Ki incompleto
Ki soku – Questão de vida ou morte
Kuki – Ki do vazio
Mizu no ki – Ki da água
Reiki - Ki universal
Seiki – Energia, espírito
Shiki – Coragem
Suûki – Conservação de energia
Tanki – Ki pequeno, impaciência
Tenki – Ki do céu
Tsu no ki – Ki da terra
Touki – Ki de luta
Yoki – cultivo de energia
Yûki - Bravura